Você provavelmente já tem um outline ou uma idéia sobre quem serão seus personagens, e durante a escrita você vai perceber que muitos “blocos” da personalidade vão continuar a se formar e se encaixar. Isso porque o processo da criação e dos personagens é o andamento contínuo da sua criatividade. Enquanto o fluxo da criatividade corre solto, é importante lembrar algumas coisas.
Tipos de personagens
Geralmente ouvimos falar de personagens inteiros (round) e planos (flat). Personagens inteiros (round) são totalmente desenvolvidos e complexos, com tudo que já discutimos antes neste post aqui.
Os planos (flat) são desenvolvidos o suficiente para dar suporte a sua função dentro do enredo. É importante deixar esses personagens onde eles devem estar: se você der muito espaço e descrição a eles pode acabar confundindo o leitor, que provavelmente desconfiará que este personagem terá um papel importante em alguma parte da trama, e vai ficar frustrado quando perceber que não passava de um coadjuvante.
Pode acontecer de um personagem plano conquistar nossa atenção e ai vem a tentação de elevá-lo ao protagonismo. Se for o início da história, não tem nada de errado nisso. Apenas evite dar o protagonismo a personagens que estão ali apenas como suporte/coadjuvantes.
Desejo
O que seu personagem deseja é o que vai mover a sua história. Aquilo que ele deseja não precisa ser extraordinário, mas o personagem precisa realmente querer, muito. Seja uma cura, um amor, o desejo de corrigir um erro, uma transformação, não importa. Ele pode até não saber imediatamente que ele precisa/deseja aquilo. Mas lembre-se que querer um pouquinho não vai funcionar, já que o desejo também funciona como o gancho que ajudará o leitor a se identificar com o personagem.
Você pode escrever um conto maravilhoso sobre um grupo de amigos que entra numa mina abandonada, descrever todos os detalhes da passagem, a luz e os reflexos, a fascinação do seu grupo pela mina abandonada, a energia que emana dos cantos escuros e úmidos, mas se não explicar o que eles foram fazer lá (estão buscando o animal de estimação perdido e ferido? são colecionadores e sabem que lá podem achar a última peça que buscam?, etc), de que vale tudo isso? Uma aventura sem meta, direção ou desejo, por mais bem escrita que seja, não carregará sua história.
Contraste
Os traços humanos são importantes, mas lembre-se de usar contrastes. Um herói não é monobloco perfeito nas suas ações e emoções, e se fosse, seria impossível fazer o público se identificar com ele.
Porém -e aqui é que esta a pegada- é importante manter seus personagens consistentes, mesmo quando acontece a contradição. Por exemplo, Enrico é um personagem valentão, abrutalhado e sempre muito sério, nunca um sorriso ou uma demonstração de fraqueza. Em um certo momento ele repara em uma senhora parada em uma esquina, assustada, os carros passando apressadamente. Ele percebe que ela esta com medo de atravessar a rua, então ele se mete no trânsito, parando os carros para que ela possa atravessar. O bruto que sai do seu caminho para ajudar uma desconhecida. Por que? Será que por baixo de toda essa fortaleza se esconde uma pessoa sensível? Será que essa senhora o lembra alguém? Todas essas coisas são possíveis e dão insight sobre Enrico. Isso é consistência.
O que não faria sentindo seria Enrico, o sério, se abrindo em sorrisos e alegrias sem motivo algum.
A transformação do personagem
Conforme expliquei neste post aqui, a transformação do personagem geralmente acontece no climax da história: logo depois de conseguir ou não seu desejo/objetivo.
Uma dúvida que já ouvi: é preciso que o personagem passe por uma transformação? Não. Você é o escritor e decide o que deseja fazer. Algumas pessoas com certeza irão criticar um livro onde os personagens não crescem ou evoluem, enquanto outros vão gostar desta constância.
É com certeza um desafio escrever um livro onde o protagonista não muda, mas pode ser feito, e acredito até, muito bem feito. Você pode, por exemplo, escrever sobre personagens que querem e até parecem ter mudado, mas na realidade não conseguem, ou talvez não percebam que não conseguiram mudar, até ser tarde demais.
Édipo nasceu para cometer incesto e parricídio e de nada adiantou ele tentar fugir do seu destino, pois no final, seu destino se concretiza.
Nomes
Dar nome aos personagens é alegria para uns escritores e desespero para outros. Alguns usam o nome e seu significado/simbolismo para caracterizar ainda mais seus personagens. A única recomendação que tenho é evitar dar nomes semelhantes ou que comecem todos com a mesma letra: Maria, Mario, Marisa, Mariamar, etc.
A não ser que você esteja escrevendo para um público em especial (como livros infantis ou YA), lembre-se que pessoas de todas idades podem estar lendo seu livro e nomes muito parecidos podem tornar a compreensão mais difícil para alguns leitores.
Detalhes, detalhes
Aaron Sorkin (roteirista de Questão de Honra, Steve Jobs, A Rede Social e West Wing e muitos outros sucessos) no workshop MasterClass falou uma coisa muito importante que eu acho importante dividir, pois nós escritores muitas vezes fazemos isso:
Eu não usaria um bloco de anotações e começaria a listar os traços do meu personagem. Vamos ver, ele gosta de beisebol e de creme de amendoim cremoso, mas não do gorduroso. (…) O que vai acontecer é que você terá uma cena em que o personagem precisa convencer os pais a lhe emprestar dinheiro por algum motivo. E você tem o bloco de notas e vai tentar inserir o creme de amendoim na cena pois é isso que faz dele “humano”. Esqueça!
Não existe limite no que diz respeito a quanto você pode deixar seus personagens humanos, mas quando estiver escrevendo, não deixe detalhes desnecessários te atrapalhar. Se uma coisa sobre seu personagem não se encaixa naquele momento, não se preocupe tentando inserir tal detalhe no livro/script.
É muito mais importante que ele transpareça nas páginas para o leitor via ações, desejos e traços do que colocar o tal creme de amendoim.
Muitas vezes fazemos listas e respondemos questões sobre nossos personagens para que ele fique mais claro na nossa mente. Grande parte destas informações não entram no livro e servem apenas para que possamos sair da nossa zona de conforto quando estamos construindo um personagem.
Duas coisas a considerar…
Evite fazer longas descrições sobre seu personagem. Geralmente a vontade de contar ao leitor sobre nosso protagonista pode fazê-lo pegar no sono. A exposição do personagem é muito importante, mas prefira breves descrições salpicadas no início do livro do que 5 páginas descrevendo absolutamente tudo sobre seu protagonista.
Lembre-se também que é melhor “mostrar do que falar“, então coloque seus personagens em situações que vão revelar quem ele é.
Evite dar atenção demais a cor dos cabelos, olhos, tipo físico, etc para que não fique parecendo que você esta descrevendo uma lista de atributos.
Pergunte ao seu personagem
Para tentar deixar seu personagem mais nítido, comece fazendo estas perguntas. Lembre-se que essas informações podem entrar ou não na história, mas a idéia aqui é apenas “conhecer” alguém que você passará os próximos meses, quem sabe até anos, escrevendo.
- Qual o nome? Tem apelido?
- Tipo físico? Alguma cicatriz? Como conseguiu? Tatuagem?
- O que as pessoas notam assim que o conhecem?
- Quem são os amigos? A família? As pessoas mais próximas?
- Onde nasceu? Onde cresceu?
- Rico, pobre, classe-média?
- Sofreu algum trauma?
- Quais as melhores lembranças? E quais as piores?
- Onde seu personagem vai quando esta triste? Quando esta com muita raiva?
- Ele tem um segredo?
- Ele já amou? Já sofreu por amor?
- O que o faz feliz?
- O que o deixa triste?
- Alguma coisa que gostaria de mudar no passado?
- Qual o maior medo? Alguém sabe? Para quem ele nunca contaria isso e por que ?
- O que ele mais deseja?
Baixe também o Questionário de Proust (link direto para o Dropbox) com outras 33 perguntas que podem ajudar você a ir ainda mais a fundo no reconhecimento e criação do seu personagem.
Boa escrita!